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Boas intenções são suficientes?

Por: Lozane Winter

O Antigo Testamento é um tesouro imensurável, não apenas pelos fatores históricos que o compõem, mas principalmente pela manifestação do agir de Deus por meio de acontecimentos e pessoas nele mencionados. Há tantas lições que podemos aprender acerca da nossa humanidade, da nossa

Antecipo-me em esclarecer que a abordagem a seguir não é uma interpretação do texto bíblico, pois isso deixo a cargo da hermenêutica e da exegese. Minha intenção é simplesmente compartilhar uma reflexão pessoal da leitura que fiz alguns meses atrás. Talvez, diferentemente de mim, você prefira se deter no Novo Testamento e não seja tão fã do Antigo do Testamento por conta, quem sabe, da ideia polarizada sobre Lei e Graça, punição e redenção, Deus Juiz e Deus Pai e por aí vai.

Muitos aceitam o Deus do Novo Testamento, mas repudiam o do Antigo como se fossem duas pessoas diferentes… que equívoco! Paulo afirma que o “Filho [Jesus] é a imagem do Deus invisível…” (Cl 1:15). E também que “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para nos ensinar o que é verdadeiro e para nos fazer perceber o que não está em ordem em nossa vida” (2Tm 3:16). Logo, até mesmo as narrativas mais chocantes e questionáveis, ao nosso entendimento, fazem parte dela. condição quando afastados de Deus, da nossa instabilidade quanto ao servir a Deus e, ao mesmo tempo conhecer a pessoa de Deus e o Seu amor. A aplicabilidade da Palavra de Deus em nossa vida é ilimitada, visto que ela “é viva e poderosa” (Hb 4:12).

Bem, mesmo que sua leitura do Antigo Testamento seja seletiva, tenho certeza de que você conhece e tem profunda admiração por alguns de seus personagens. Um dos mais populares sem sombra de dúvida é Davi, pois sua vitória contra o gigante Golias é memorável e rende analogias e aplicações à vida cotidiana e espiritual até os dias de hoje. E é exatamente algo sobre ele que desejo compartilhar por meio deste texto. Enquanto eu lia 1 Crônicas 13 e 15, algumas coisas começaram a borbulhar em minha mente. Aquilo que me foi trazido como aprendizado resolvi colocar em palavras e espero que possa falar ao seu coração tanto quanto falou ao meu. 

Vamos lá! Após a morte de Saul, Davi foi confirmado como rei de Israel e havia no coração dele o desejo sincero de levar a arca de Deus para Jerusalém, pois durante o reinado anterior ela havia sido negligenciada. 

Primeira Crônicas 13 narra que Davi estava determinado a levar a arca de Deus para Jerusalém, porém agiu baseado apenas em sua intenção e concordância do povo, ou seja: fez isso do jeito dele. Então colocaram “a arca de Deus numa carroça nova [puxada por bois] e a levaram da casa de Abinadabe. Uzá e Aiô guiavam a carroça” (v.7). Acredito que, você e eu, podemos concordar que havia boas intenções aí. Davi e o povo em grande alegria buscaram a arca, porém durante o percurso aconteceu um incidente: “os bois que puxavam a carroça tropeçaram”, e Uzá em sua boa intenção “estendeu a mão para segurar a arca. A ira do Senhor se acendeu contra Uzá, e ele o matou por haver tocado na arca […]. Davi ficou indignado…” (vv.9-11). Diante disso, imagino que povo paralisou: a dança parou e as canções e os instrumentos de celebração emudeceram. Essa é uma daquelas cenas diante das quais, você e eu questionaríamos: “Como Deus pode trazer tamanho desgosto ao povo que alegremente celebrava a Sua presença entre eles?”. E talvez, em nossa indignação, passaríamos a rejeitar tal presença, uma vez que ela nos trouxe pavor e indignação. Contudo, a despeito de estar abalado e com “medo do Senhor” pelo que ocorreu a Uzá, Davi não desistiu da presença de Deus e perguntou: “Como poderei levar a arca do Senhor?” (v.12). E enquanto procurava pela resposta, a arca ficou por três meses na “casa de Obede-Edom, de Gate” (v.14). 

Aqui, está a minha primeira lição: Boas intenções não são suficientes para evitar o juízo divino quando Suas ordenanças são negligenciadas.

Antes de seguirmos para conhecer a resposta encontrada por Davi, aproveitarei esses “três meses” no fim do capítulo 13, para abrir um parêntesis e discorrer um pouco sobre o contexto que envolvia a intenção de Davi.

Voltando décadas atrás, antes de Davi tornar-se rei, os israelitas foram derrotados pelos filisteus e a arca de Deus foi levada de Israel. Porém, isso não mudou o fato de que o desejo de Deus era de estar com o Seu povo. Percebemos isso devido às consequências que sobrevieram aos filisteus como resultado de tal apropriação. Eles a levaram para Asdode e a colocaram no templo de Dagom. Por duas vezes, esse deus foi encontrado caído, de bruços, diante da arca da Aliança. Além disso, o Senhor feriu a população com uma praga de tumores, o que os “inspirou” a enviar a arca para outra cidade: Gate. “Mas, quando a arca chegou a Gate, a mão do Senhor pesou sobre a cidade, ferindo com uma praga de tumores os homens de lá, tanto os jovens como os velhos, e houve grande pânico” (1Sm 5:9). Assim, enviaram-na para Ecrom, que também sofreu com o juízo do Senhor. Então, depois de sete meses, os filisteus resolveram devolver a arca para Israel. O interessante é que, mesmo com a pressa de se livrarem da arca, eles chamaram seus sacerdotes e adivinhos e lhes perguntaram: “O que faremos com a arca do Senhor? Digam-nos como devemos mandá-la de volta para sua própria terra” (1Sm 6:1). Há muitos detalhes na resposta que ouviram, entretanto destaco a orientação do versículo 7: “…construam uma carroça nova e escolham duas vacas […]. Atrelem as vacas à carroça…”. Familiar, não? Agora sabemos a provável referência usada por Davi em sua primeira tentativa de levar a arca de Deus para Jerusalém. O curioso é que as vacas seguiram sozinhas para Bete-Semes. Porém há uma razão para isso, leia todo o capítulo de 1 Samuel 6 e descobrirá. 

Bem, mas se Davi foi buscar a arca em Quiriate-Jearim, como a arca foi levada de Bete-Semes? “O Senhor matou setenta homens de Bete-Semes, porque olharam para dentro da arca do Senhor. E o povo chorou muito por causa da grande matança. ‘Quem pode estar na presença do Senhor, este Deus santo?’, clamaram. Para onde mandaremos a arca daqui? Então enviaram mensageiros ao povo de Quiriate-Jearim e disseram: ‘Os filisteus devolveram a arca do Senhor. Venham buscá-la!’” (vv.19-21).

Temos um paralelo aqui: setenta homens morreram porque olharam dentro da arca, por conta disso o povo de Bete-Semes indagou : “Quem pode estar na presença do Senhor, este Deus santo?” (v.20), algo que Davi veio a responder, se assim podemos dizer, posteriormente em sua segunda tentativa. Diferentemente de Davi, após o ocorrido, esse povo não quis mais a arca no meio deles.

“Então os homens de Quiriate-Jearim foram buscar a arca do Senhor. Eles a levaram até a casa de Abinadabe, numa colina, e consagraram seu filho Eleazar para tomar conta da arca do Senhor. A arca permaneceu em Quiriate-Jearim por muito tempo: vinte anos no total. Durante esse período, todo o Israel lamentava à espera de alguma ação do Senhor” (1Sm 7:1-2). Como era possível esperar algo da parte de Deus sem fazer a parte deles? Aplico essa pergunta a nós também com a exortação de Samuel a eles: “…livrem-se de seus deuses […]. Voltem o coração para o Senhor e obedeçam somente a ele; então ele os livrará das mãos dos filisteus” (v.3).

Agora que sabemos um pouco sobre o contexto que envolvia a intenção e a pergunta de Davi: “Como poderei levar a arca do Senhor?’” (1Cr 13:12), fecho aqui o meu parêntesis e retorno com a resposta encontrada por esse rei amado do Senhor: “Ninguém, a não ser os levitas, levará a arca de Deus. O Senhor os escolheu para carregarem a arca de Deus e o servirem para sempre” (1Cr 15:2). Essa resposta certamente Davi encontrou na Lei de Deus. Se antes ele fora influenciado a usar um método pagão em sua intenção de trazer a presença do Senhor para onde habitava, agora ele sabia que há apenas um método que Deus aceita: aquele que Ele mesmo estabeleceu. Assim, os homens separados para o Seu serviço e não animais deveriam carregar a arca de Deus. “Então os sacerdotes e os levitas se consagraram a fim de trazer para Jerusalém a arca do Senhor, Deus de Israel. Os levitas carregaram a arca de Deus sobre os ombros, usando as varas presas a ela, conforme o Senhor havia instruído por meio de Moisés” (vv.14-15). Se queremos conhecer e andar nos caminhos de Deus, voltemo-nos para a Sua Palavra, pois ela é a única que pode nos ensinar a servir a Deus e a cumprir os Seus propósitos da maneira que Ele planejou.

Assim chegamos a minha segunda lição: Se queremos andar nos caminhos de Deus, consagremo-nos a Ele e voltemo-nos à Sua Palavra, pois ela nos revela a maneira apropriada de carregarmos a presença de Deus.

Em 1 Crônicas 15 também vemos que “Davi […] preparou um lugar para a arca de Deus e armou uma tenda especial para ela” (v.1). Observe o seguinte: além da intenção em levar a arca de Deus para Jerusalém, Davi preparou um lugar especial para colocá-la. Embora, a princípio, Davi não tenha atentado para a forma adequada de transportar a arca, pelo versículo podemos inferir que ele não a traria apenas por trazer, pois havia reverência no coração quanto ao que ela representava: a presença de Deus. Logo, sua intenção também era fornecer uma habitação para o Senhor no meio do povo. 

Observando a aplicabilidade dessa ação de Davi, entendo essa “tenda especial” como sendo o nosso coração, e, de fato, ele precisa estar pronto para receber a presença de Deus no sentido de Ele ser Senhor absoluto: nossa vida deve ser um lugar que seja somente dele e de mais ninguém.

Chego assim a minha terceira lição: A presença de Deus não pode ser um acessório que ornamenta a nossa vida, mas sim o Senhor que habita no lugar central dela: o nosso coração.

Acredito que aqui, você possa estar questionando: “Disso eu sei, o que há de novo aí?”. De fato, nada. Pois não foram poucas as vezes que já lemos ou ouvimos sobre entregar o coração a Deus e torná-lo o Senhor de nossa vida. Porém, cada vez mais tenho observado, inclusive em mim, que muito disso ainda se encontra no plano da informação, uma vez que continuo, em muitos momentos, tentando ocupar o lugar que deveria ser somente do Senhor. 

Bem, para finalizar eis algumas conclusões que a leitura dos capítulos 13 e 15 de 1 Crônicas me trouxe sobre nossas intenções para com Deus. De certo, o nosso desejo de servir o Senhor pode ser legítimo, mas se não considerarmos as Suas ordenanças, Suas orientações e insistirmos no nosso jeito, o resultado pode ser desastroso. Não basta apenas querer a presença de Deus, é necessário saber como trazê-la, e, no nosso caso, é impossível fazer isso sem a mediação de Jesus Cristo, visto que é Ele quem nos torna os “levitas” capazes de portar a presença de Deus em nossos dias. Quando penso no carregar a presença de Deus sobre os ombros (1Cr 15:15), isso me fala da tamanha responsabilidade que temos aí, pois diferentemente dos levitas dos tempos bíblicos, somos convidados a portar a presença de Deus em nosso coração, declarando-o como Senhor e Rei da nossa vida.

É comum pensarmos: “Se é para Deus, Ele aprova!”. Bem, pelo que lemos, sabemos que não é assim. Somente Deus pode nos instruir sobre o como e o que fazer para Ele. Davi quis prestar um serviço a Deus usando referências alheias à Palavra do Senhor. Para ele, o mais importante era ter a arca em Jerusalém, mas, em sua primeira tentativa, viu que o meio que usou não justificaram as suas intenções. Por isso, insisto na necessidade de buscarmos a Palavra de Deus e torná-la referência, não apenas no serviço a Deus, mas também em nosso dia a dia. O nosso coração deve estar em consonância com Ele em tudo.

Apesar de séculos nos separarem da narrativa bíblica e da arca sagrada, quando pensamos na aplicabilidade do resultado experimentado por Davi, tanto o negativo quanto o positivo, relacionado ao seu empreendimento, creio que podemos levantar alguns questionamentos e refletir sobre a validade deles em nossa própria vida:

Quais são minhas intenções com relação a Deus e a Sua presença? 

De que maneira tenho agido para carregar a presença de Deus em minha vida e ministério?

O que me indigna quanto ao agir de Deus na minha vida e na de outros? 

Em que momentos considero Deus injusto? 

Tenho deixado de observar algumas de Suas ordenanças reveladas em Sua Palavra?

A minha vida é, de fato, um lugar preparado em Cristo para Deus habitar?

Que assim como Davi, possamos, você e eu, ser despertados quanto às nossas intenções e buscar em Deus e em Sua Palavra as orientações necessárias antes de colocarmos em prática até mesmo o bem que pretendemos fazer. Que o Senhor nos tome pela mão e nos conduza pelo caminho que Ele mesmo nos convida a trilhar: “…tema o Senhor, seu Deus, […] viva de maneira agradável a ele […] ame e sirva ao Senhor, seu Deus, de todo o coração e de toda a alma” (Dt 10:12).

* As citações bíblicas são da Nova Versão Transformadora (NVT — Editora Mundo Cristão, 2016).

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